Afinal, em que mundo vivem os cursos de engenharia das universidades públicas brasileiras?
Na
minha primeira greve como professor, tive a oportunidade de ver de
outra perspectiva o mundo em que vivemos no ensino de engenharia em uma
universidade pública. O que se vê é um retrato da formação que nossos
estudantes recebem.
Após alguns dias acompanhando o vigor do movimento, resolvo aderir à
greve. A essa altura, mais de 40 universidades públicas já estavam em
greve. Reuniões, assembleias, mobilizações, passeatas, movimentação
virtual; todos na luta por uma universidade pública, gratuita e de
qualidade. Enquanto isso, no Reino da Tecnologia, a movimentação é quase
nula. Ninguém sabe, ninguém fala, ninguém vê. Estacionamentos lotados,
salas de aula cheias, restaurantes com as tradicionais filas.
Resolvi fazer uma última aula de debate sobre a greve. Nas trocas de
ideias e argumentos, três questões subjetivas se destacam. Primeiro, a
completa alienação sobre a situação. Para eles, que viviam naquela
redoma tecnológica, nada estava ocorrendo; ou, pelo menos, nada que lhes
dissesse respeito. "Professor, essa greve não vai dar em nada, quase
ninguém está participando, só tem meia dúzia de professores".
Independente da posição dos professores das engenharias, é
impressionante a capacidade de isolar seus alunos do mundo externo, do
mundo real.
Segundo, a aversão às lutas dos trabalhadores. Embora essa palavra não
tivesse saído em nenhum momento da boca dos estudantes, a clara
impressão é que, na cabeça deles, grevistas são baderneiros, comunistas,
preguiçosos; isto é, gente que não está a fim de trabalhar e que
busca, por meio da greve, conquistar ainda melhores salários,
mordomias; "esses professores querem que não haja avaliação para que
subam na carreira e pedem melhores salários" (numa clara interpretação
distorcida da proposta de novo formato de avaliação levada ao governo
pelo Andes). Ou seja, estamos formando profissionais com a visão do
patrão, do capital, em oposição ao trabalhador.
Terceiro, e mais pesado, é o enorme individualismo presente. Na
verdade, é um individualismo burro, pois é imediatista. Preocupados com
seus estágios, suas promessas de efetivação, suas possíveis
oportunidades de concurso, suas viagens de férias, seus intercâmbios
para a Europa, os alunos sequer consideram como algo relevante para suas
vidas a luta por uma universidade pública decente, estruturada, de
qualidade. É recorrente o argumento: os alunos são os únicos
prejudicados, são as grandes vítimas das greves. Mentira, pois são os
que mais se beneficiarão, no longo prazo, dos seus frutos. Não é preciso
destacar que os avanços na estrutura e qualidade do ensino público
superior (assim como as principais conquistas de lutas das classes
trabalhadoras no mundo) são resultados unicamente das lutas travadas
anteriormente (
resumo das reivindicações e resultados das greves desde 1980).
O mais triste dessa última constatação é a consciência de que essa
percepção individualista e imediatista é apenas o reflexo do raciocínio,
da postura, dos ensinamentos da maioria dos professores dos cursos de
engenharia em uma universidade pública. A corrente de vitimização dos
alunos enquanto maiores prejudicados com a greve rompeu-se quando uma
aluna disse: "eu defendo a greve, pois eu quero que, daqui a vinte anos,
meu filho possa ter a oportunidade que eu tive de estudar de graça num
dos melhores cursos universitários do Brasil". O silêncio que se
seguiu escancarava como aquela reflexão simples, ainda individualista,
mas numa perspectiva inteligente, de longo prazo, foi um choque na
estrutura de pensamento daqueles jovens e promissores engenheiros.
Engenheiros deslocados da realidade de seu país, avessos às lutas dos
trabalhadores e preocupados com seu próprio umbigo. Esses são os
profissionais que queremos formar nas universidades públicas
brasileiras?
Felipe Addor é professor do Departamento de Engenharia
Industrial da UFRJ (Centro de Tecnologia), onde se formou em Engenharia
de Produção. É fundador e pesquisador do Núcleo de Solidariedade
Técnica da UFRJ (SOLTEC/UFRJ).
Fonte:
Diário Liberdade