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Paulo Kliass
A divulgação recente de más notícias
sobre o desempenho de empresas atuantes da área da saúde e do ensino
superior traz à tona o necessário debate a respeito da preocupante
mercantilização dos serviços públicos em nosso País. À medida que
parcela expressiva destes setores passou a ser composta de corporações
capitalistas, os impactos negativos se fazem sentir pela maioria da
população.
No início do ano, a Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS) acabou por decidir pela interdição de 225 planos
de saúde operados por 28 empresas atuantes no setor. Esse tipo de
medida não é uma grande novidade. Antes disso, em outubro passado, esse
órgão regulador do sistema havia proibido 301 planos de venderem seus
produtos. E ainda em julho de 2012, a lista de proibição contemplava 268
planos. Ainda que tais fatos possam passar a idéia de que o Estado está
agindo e fiscalizando, a pergunta que deve ser feita vai em sentido
oposto. Como é possível que uma área tão sensível, como a saúde, chegue a
tal extremo de descontrole e regulamentação?
Outra decisão que causou grande impacto
foi a operação de venda da empresa líder de saúde privada, a Amil. Em
novembro de 2011, o Estado brasileiro autorizou que ela fosse comprada
por uma das maiores operadoras globais, a norte-americana United Health,
pelo valor de R$ 10 bilhões. Além das dificuldades envolvendo a
internacionalização do setor, a decisão gerou muita polêmica por
afrontar o impedimento legal de que hospitais (também incluídos no
pacote) sejam propriedade de grupos estrangeiros.
Ensino superior privado: mercantilização crescente
Na área do ensino superior, em dezembro
passado, o Ministério da Educação proibiu 207 cursos de realizarem
concursos vestibulares para novos alunos e no início do presente ano
comunicou que outros 38 cursos haviam sido punidos com a proibição de
expandirem o número de vagas, tal como solicitado pelas instituições
proprietárias. A educação universitária também vem sendo objeto de
profunda transformação empresarial e corporativa, de modo que o
crescimento da parcela de setor privado no conjunto do sistema é
bastante expressivo.
De acordo com os dados oficiais do INEP,
existem 2.365 instituições de ensino universitário no Brasil. A
repartição de tais faculdades e universidades revela que 88% do total
são entidades privadas, restando apenas 12% no setor público
(considerando o conjunto federal, estadual e municipal). Em termos
numéricos: 2081 privadas e 284 públicas. Se a análise for para o total
de alunos inscritos, o setor privado oferece 76% do total e o setor
público fica com apenas 24%.
Em termos de matrículas, a expansão
quantitativa foi expressiva ao longo da última década. Em 2002 havia 3,5
milhões de matrículas no ensino superior e em 2011 atingiu-se o marco
de 6,7 milhões de alunos inscritos. Porém, a maior parcela desse
crescimento de 75% deveu-se ao setor privado. As matrículas no setor
público cresceram 69% ao longo dos 10 anos, ao passo que as do setor
privado cresceram 105%.
Esse crescimento expressivo das escolas
particulares encontrou na própria formulação de políticas públicas um
importante aliado. Por um lado, pelos longos períodos em que a
orientação de contenção de gastos públicos provocou um verdadeiro
sucateamento do modelo das universidades públicas, em especial as
federais. Restrições orçamentárias em seqüência contribuíram para
inviabilizar investimentos necessários da rede física e de seus
equipamentos, Além disso, a política de recursos humanos não contribuía
para atrair e manter pessoal qualificado.
PROUNI: socialização dos custos da baixa qualidade
Por outro lado, o governo criou um
programa de apoio a bolsas de estudos para as escolas privadas. Através
desse modelo, as empresas do setor passaram a ter praticamente
assegurada uma significativa da receita correspondente às vagas
oferecidas. O discurso oficial soltava loas a um modelo que parecia
agradar a todos, menos a um futuro com educação de qualidade assegurada.
A população de baixa renda via finalmente chegar o sonho do diploma de
ensino superior. As empresas operantes no sistema de educação privada
reduziram de forma significativa o risco em suas operações e nem se
preocupavam com os resultados obtidos, pois o Estado assegurava suas
receitas operacionais, por meio das bolsas oferecidas.
Atualmente, o PROUNI custeia 1,1 milhão
de bolsistas, sendo 740 mil na modalidade integral (100% do valor da
mensalidade) e 360 mil na modalidade parcial (50% do valor da
mensalidade). Além disso, existe a opção do financiamento a juros
subsidiados. O programa FIES oferece recursos para pagamento de despesas
com matrículas e mensalidades. As regras existentes prevêem um período
de carência durante o curso e o reembolso posterior a juros anuais de
3,4%, quando o beneficiário teoricamente tiver obtido ganhos salariais
derivados de sua formação. Com esse incentivo, as empresas que operam na
educação universitária passaram a ter um mercado cativo para suas
vagas.
Saúde e educação: mercadoria ou direito universal?
Esses dois exemplos evidenciam os
impactos negativos do caminho da mercantilização crescente das áreas de
serviços públicos. A conversão desses direitos democráticos - acesso à
saúde e à educação – em simples mercadorias oferecidas pelas leis de
oferta e demanda compromete a qualidade desses importantes pilares de
cidadania e de construção de uma sociedade inclusiva e sem desigualdades
de natureza social ou econômica.
Dentre as conseqüências do período de
hegemonia absoluta do pensamento neoliberal, encontra-se a tentativa de
disseminação da idéia de que a ação pública é sempre ineficiente e
prejudicial ao conjunto da sociedade. Assim, a melhor solução seria
sempre aquela encontrada nos termos das relações de troca, no ambiente
determinado pelas leis do mercado. Direitos e serviços públicos, a
exemplo da saúde e da educação, passam a ser encarados e tratados como
simples mercadorias, a exemplo de todas as demais existentes em uma
economia capitalista. Conceitos como oferta, demanda, cliente, preços,
taxa de retorno, multa, contrato, inadimplência, valor de prestação,
carência, entre outros, passam a fazer parte do dia-a-dia de quem
convive com categorias como saúde, doença, vida, morte, educação,
pesquisa, ciência, conhecimento. Uma inversão completa de valores!
Ora, parece evidente que esse processo
de mercantilização é contraditório com aquilo que se pretende justamente
com sistemas de educação e de saúde portadores de qualidade para seus
usuários e para o próprio País.
Quando a lógica de operação de um
hospital ou de uma universidade passa a ser a da maximização do retorno
do investimento realizado a qualquer custo, está comprometida a própria
natureza pública do serviço a ser oferecido. As prioridades
estratégicas, as áreas de maior urgência social, a distribuição espacial
de acordo com necessidades regionais, a remuneração dos trabalhadores
nos sistemas, tudo isso passa a ser relegado a um segundo plano nas
decisões empresariais.
Serviço público: interesse social ou lógica privada?
A contabilidade fria do modelo
capitalista busca a realização do lucro por meio da dinâmica de elevação
de receitas e redução das despesas. Essa abordagem favorece o
atendimento dos interesses dos proprietários e acionistas da empresa,
mas quase nunca satisfaz as necessidades de áreas socialmente sensíveis.
Essa é a principal razão, inclusive, que levou boa parte dos países do
mundo capitalista à opção por delegar ao Estado a prestação de tais
serviços. Ou então, pela constituição de modelos que contam com
subsídios públicos destinados a instituições privadas, mas que
demonstram efetiva competência e qualidade naquilo que oferecem à
sociedade.
No nosso caso, o risco do processo que
atravessamos é o de ficarmos com o pior dos mundos. As áreas de
excelência do setor público estão, aos poucos, sendo sucateadas e
perdendo competência e qualidade. As áreas de expansão do setor privado
encontram um potencial de crescimento com baixa capacidade de regulação e
fiscalização do Estado. A mercantilização tende a provocar uma
segmentação baseada no nível de rendimento dos usuários dos sistemas,
com a complementação de recursos públicos sem a correspondente qualidade
na prestação dos serviços “públicos” oferecidos. A relação mercantil
pressupõe um contrato. E o contrato estabelece a restrição do uso ao
pagamento prévio.
Os recursos orçamentários deixam de ser
utilizados para reforçar e reconstruir um sistema público à altura das
necessidades de nossa população. Na verdade, são drenados para
apropriação privada em um sistema onde a lógica predominante é a da
remuneração do capital.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor
em Economia pela Universidade de Paris 10.
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