24 de abril de 2010

EDUCAÇÃO-SISTEMA APOSTILADO: A LÓGICA DO CAPITALISMO

INDÚSTRIA CULTURAL E O SISTEMA APOSTILADO:A LÓGICA DO CAPITALISMO

CARLOS EDUARDO DE SOUZA MOTTA *


RESUMO: O texto propõe uma reflexão sobre o sistema de ensino apostilado adotado em escolas e cursos preparatórios. A apostila é vista como um símbolo de eficiência e modernização, passando um conhecimento de maneira organizada, prática e racional, tendo como um único objetivo a aprovação no vestibular. O ensino apostilado compartimentaliza as informações e faz o indivíduo perder a criticidade; nota-se, portanto, uma mercantilização e massificação do conhecimento, transformando o “ensino” em mais um produto da Indústria

O sistema apostilado adotado em muitos cursos preparatórios e escolas começou a aparecer na década de 1950, com a alegação de ser mais prático, dinâmico e, principalmente, mais coerente com a nova “realidade” da educação brasileira. Atualmente, esta idéia não mudou e o sistema apostilado substituiu quase totalmente o livro didático, principalmente dentro da rede particular de ensino.


O discurso da modernização,1 um dos que mais justificam o uso de apostilas, é muito forte e sensibilizador, pois tal material é tido, também, como o mais viável economicamente. A propaganda envolvendo esse tipo de material pedagógico e a força dos slogans produzidos unificam idéias e atitudes-chave para o sucesso deste modelo. Para não cairmos nas teias do discurso da modernização, do mundo global e das novas tendências do mercado educacional, precisamos refletir sobre diversos aspectos: Como entender a educação em um contexto social e político? Quais são as intenções gerais dos modelos educacionais no Brasil? A quem os modelos realmente beneficiam? Como enfrentar o mito da globalização e o seu discurso modernizador dentro do universo educacional?


Tais questionamentos, de alguma maneira já correntes, estão sendo debatidos e estudados. A intenção aqui é colocar em pauta uma reflexão sobre o tema para que, com o passar do tempo, não deixemos os novos-velhos símbolos transformarem-se em “verdades”. Tais símbolos são ideologicamente formados e assimilados pelo senso comum e servem, na sociedade capitalista, para ocultar a subordinação de uma classe em detrimento da outra.


Fazendo uma digressão, constata-se que, em nossa sociedade, ao falar em educação, devemos sempre nos reportar às doutrinas pedagógicas, que estariam relacionadas direta ou indiretamente à “realidade”. Concretamente, os processos de ensino e aprendizagem far-se-ão presentes através de instituições específicas que irão transmitir, por meio de uma “doutrina pedagógica”, os valores das instituições: família, igreja, comunidade e escola são alguns exemplos.


O homem vive em sociedade e aprende com seu semelhante. Não podemos aceitar esta constatação sem olhá-la criticamente. O termo doutrina pedagógica pode soar como uma camisa de força. O indivíduo é um ser reflexivo que através das gerações não apenas reproduz os valores e as experiências das gerações passadas. A educação precisa ser vista não como uma mera reprodução, mas sim como algo libertador, dinâmico, com a finalidade até mesmo de colaborar em uma eventual mudança na estrutura social vigente. Não deve haver separação entre educação e vida. A vida é antes de tudo uma ação educativa. Como pensar o ato de educar de maneira livre e dinâmica? O ato educacional deve dar ao indivíduo as condições necessárias para que este reflita sobre as experiências vividas e tentar ajudá-lo na ordenação e na sistematização deste processo, tendo a escola todas as condições para estabelecer estas reflexões. Mas, como pensar em educação desvinculada de um processo maior?


A história recente de nossa sociedade vincula-se ao capitalismo, com a divisão social do trabalho e a diferenciação na posse e aquisição dos meios de produção. Analisando a concepção de Bourdieu para a educação, Bárbara Freitag (1986) afirma que:

"O sistema educacional é visto como uma instituição que preenche duas funções estratégicas para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura (...) e a reprodução da estrutura de classes. Uma das funções se manifesta no mundo das “representações simbólicas” ou ideologia, a outra na própria realidade social. Ambas as funções estão intimamente interligadas, já que a função global do sistema educacional é garantir a reprodução das relações sociais da produção."



Esta educação que reproduz a ideologia da classe dominante está voltada exclusivamente para o incremento da capacidade, entendida como o simples aprimoramento da força de trabalho. Este tipo educação, e porque não falar da escola, se transforma em uma verdadeira fábrica de mão-de-obra, preocupando-se mais com as demandas mercadológicas do que com a obtenção do conhecimento. Este modelo negligencia o indivíduo e se preocupa com o rendimento qualitativo e quantitativo, necessário para cobrir a demanda do mercado na reprodução capitalista. Não se trata de desenvolvimento e, até mesmo, de capacitação para o trabalho, entendido democraticamente, isto é, com o objetivo de estender a aquisição dos saberes intelectuais, materiais e culturais igualitariamente para todos.


Ao desvendar a estrutura capitalista e sua relação com a educação, precisamos nos aprofundar nos aspectos ideológicos. Estes revelam a perpetuação da lógica capitalista. Louis Althusser (1987), pela primeira vez, caracteriza a escola como um “aparelho ideológico do Estado”. Para ele, a escola terá a função de reproduzir as relações materiais e sociais da produção. A escola, além de simplesmente trabalhar a serviço do mercado, transforma-se em fábrica de mão-de-obra, atuando em um nível maior, o ideológico. De acordo com Althusser, existe todo um trabalho para que o indivíduo se sujeite a regras previamente estabelecidas. Através da transmissão do conhecimento, pela palavra, é que a escola executará este papel. Em sua concepção, a escola não cria a divisão de classe, mais vai contribuir para sua reprodução. Nesta roda viva, o indivíduo indiretamente aceita sua condição de classe, pois a própria educação, ideologicamente forjada, prepara-o para o mercado e gera no indivíduo uma sensação de eficiência, de potencial, de utilidade.


Porém, se a escola tem a sua participação no processo de reprodução social, ela não é a única instituição responsável por tal reprodução. A começar pelas questões macro econômicas da qual fazem parte outros fatores de ordem política, social e cultural.

Contrariamente à visão pessimista de que todas as instituições de nossa sociedade estão reproduzindo a lógica do capitalismo e as estratégias de dominação das elites, Gramsci (apud Freitag, 1986) desenvolve a idéia de “contra-hegemonia”. A escola como instituição pode iniciar um movimento contra-hegemônico, assumindo um papel estratégico de mudança. Segundo Gramsci, o Estado, não sendo autoritário, permite que a sociedade seja um campo aberto para circulação de ideologias. 2 Logo, se existe uma ideologia dominante, também pode existir uma contra-ideologia que venha combater e servir para a libertação das classes subjugadas. Se a escola reproduz uma educação que se identifica e justifica uma certa relação de dominação, ela também pode criar condições de libertação ou ao menos estabelecer a crítica, livrando o indivíduo dos descaminhos do senso-comum e da fragmentação que deformam o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e cultural dos alunos.


O conhecimento apostilado, porém, produzido em verdadeiras “fábricas do saber” potencializa a “(re)produção” de indivíduos massificados, prontos à adequação social que, atualmente, tem como um de seus principais objetivos o consumo. Sem este, não há capitalismo.


Quais seriam, pois, as saídas? Primeiramente, seria necessário estabelecermos uma crítica desmistificadora desse modelo educacional. Para tanto, voltemos um pouco à história recente da nossa educação. Não se pretende, aqui, detalhar os modelos educacionais adotados, mas, sim, traçar um painel geral para entendermos qual é a lógica da educação no Brasil e vermos que a apostila é um símbolo de modernização diretamente vinculado ao ideal de progresso, eficiência e dinamismo.


A idéia de progresso econômico, de nação independente, sempre esteve presente no imaginário da nação brasileira.3 Na independência, na instauração da República e no atual governo, o objetivo sempre foi o de inserir o país no rol das economias desenvolvidas.


Tendo como ponto de partida a década de 1950, no governo de Juscelino Kubitschek, notamos que a visão de progresso estava intimamente ligada ao desenvolvimento industrial. A nação dependia, segundo a ótica do governo, do investimento na industrialização para alcançar a modernização. O Plano de Metas vai pensar a educação como um meio de aprimorar o desenvolvimento industrial e consolidar o capitalismo brasileiro. A educação é claramente pensada como formação voltada para atender as demandas do mercado. A mão-de-obra não qualificada era encarada como um risco para o desenvolvimento econômico.


Nos governos militares pós-1964, percebemos a mesma vinculação da educação ao desenvolvimento capitalista e, também, toda uma ideologia forjada para a aceitação do regime não democrático que era propagandeada pelo discurso de que as ações governamentais iriam beneficiar a mobilidade social. Partia-se do pressuposto de que naquela sociedade capitalista em “desenvolvimento” todos teriam reais possibilidades de crescimento econômico e social. O objetivo do ensino era instrumentalizar e adequar o indivíduo para o mercado, visando o aumento da capacidade produtiva. Esta lógica aparece nitidamente no governo Médici. Segundo Lewin (1985),


(...) a educação passa por uma intensa metamorfose: a ser protagonista essencial na equação operada pelo Estado para controlar eficientemente o processo político de seu desenvolvimento capitalista. Na medida em que a segurança é definida como condição prévia para o desenvolvimento, esperase da educação o desempenho de papéis reforçativos desse postulado, devendo preencher, para tanto, três funções básicas em sua nova atribuição de produtora de recursos humanos: I – a educação como segurança do sistema econômico capitalista. II – a educação como segurança da sociedade capitalista. III – a educação como segurança do progresso nacional."


Caminhando em direção aos anos 80, com o processo de abertura política, a educação estaria a serviço da cidadania, da participação política e do desenvolvimento da justiça. Estas idéias, porém, não se concretizaram e, mais uma vez, a educação ficaria vinculada ao processo produtivo, sendo sua “eficácia” comprovada apenas quando esta concretizasse a relação educação- desenvolvimento econômico.


Na década de 1990, um novo dado pode ser acrescentado nesta estrutura educacional que privilegia o capital. O discurso da globalização vincula a educação à racionalização administrativa e à eficiência produtiva, para que a nação possa competir em um mercado internacional cada vez mais dinâmico e competitivo.


O discurso de um mundo e de um mercado global atinge e transforma os objetivos educacionais. Nos dias atuais, propagandeia-se que nossa sociedade muda velozmente e que o indivíduo precisa estar adaptado a estas mudanças. Note-se que o importante, agora, é responder às necessidades do mercado que exige profissionais dinâmicos, criativos, capazes de se adaptar rapidamente a novas situações, informados e informatizados. Para tanto, a escola priorizou a aquisição de um grande número de informações (destarte seu objetivo desde os enciclopedistas), porém, agora, com critérios de utilidade, facilidade e rapidez.


Mas o que seriam informações úteis? Se voltarmos a Kant, Comte e Bacon, veremos que o conhecimento, a ciência deveria superar os estágios considerados menos desenvolvidos da metafísica e da teologia Para a sociedade atual, a resposta é a adaptação introjetada pela “sapiência” da Indústria Cultural. Ela mostra aos indivíduos o que realmente é útil, “racionalizando” e padronizando as ações. Dentro deste universo, o indivíduo perde a criticidade e a produção cultural torna-se mercadoria. Perdendo o poder reflexivo, a sociedade fica a mercê dos grupos que monopolizam as informações. Por sua vez, a educação também se transforma em um produto da Indústria Cultural, uma vez mais reproduzindo a ideologia dominante. Esta, mesmo em sociedades democráticas, como tão bem demonstrou Aléxis de Tocqueville em Democracia na América, reforça seu poder sobre os indivíduos tutelados.


Zeloso guardião de seu poder, o Estado, nas palavras de M. Tragtemberg, é o grande organizador da hegemonia, no sentido gramsciano do termo, controlando, através de licenças, os instrumentos de reprodução simbólica. Desativando a política e eliminando a opinião pública com capacidade de opor-se, ele, por meio da comunicação de massa, reforça o controle social. Ou seja, sob uma fachada democrática, o Estado no século XX realiza a “democracia totalitária” enunciada por Tocqueville no século passado (Prefácio da obra de Marcondes Filho, 1986).


É nesse sentido que o sistema de ensino apostilado contribui para a tutela e a adaptação social. Ele é mais uma mercadoria inserida no contexto da Indústria Cultural. Pela fragmentação do conhecimento, compartimentaliza o saber. O conteúdo do ensino é dividido em cadernos, que por sua vez são subdivididos em matérias, com aulas seguindo uma numeração durante o ano letivo. As aulas são esquemáticas ou com textos explicativos que não dão margem a analogias e, conseqüentemente, a uma discussão mais aprofundada. Os exercícios propostos ao final de cada aula servem apenas para testar o conhecimento “dito mais importante”, segundo a perspectiva do sistema. O mais grave é a impressão que as apostilas passam de que esta maneira de organizar o conhecimento é mais “prática”, dando a sensação de que todo o conhecimento a ser atingindo está contido naquelas poucas páginas.


No discurso, os elaboradores das apostilas argumentam que elas são apenas um meio para que o professor possa discutir, debater e fazer analogias sobre o assunto ministrado. Mas, como “subverter” sua lógica quando o número total de aulas vencido é considerado condição para o êxito do professor e da aprovação no vestibular por parte do aluno? O aluno influenciado, e porque não dizer manipulado pelas propagandas dos cursos preparatórios, acredita no produto que comprou e seu desempenho estará vinculado ao bom funcionamento do material. Este, então, cumpre a dupla função de massificar o professor e o aluno. Como observa Zuin (1995, p. 153):


Por detrás do processo de massificação do produto vinculado pela Indústria Cultural, pode-se vincular a promessa de que a produção cultural, enquanto patrimônio universal da humanidade, seria reapropriado por todos. Não obstante, o que efetivamente ocorre é a (pseudo) redemocratização destes mesmos produtos.


Na escola, o sistema apostilado, como mais uma mercadoria inserida no contexto da Indústria Cultural, promete oferecer um ensino organizado, prático e racional. Mas, fragmentando o conhecimento, incapacita o indivíduo de compreendê-lo de maneira global, incluindo causas, processos, conseqüências, contextos etc. A quebra da unidade impede a ação reflexiva e transforma-se em instrumento de dominação. Reproduz a ideologia de setores privados e do próprio Estado, preparando o indivíduo quase que exclusivamente para o vestibular, afastando-o da possibilidade de um ensino e de uma educação emancipadores, bem como do conhecimento, da aquisição e do usufruto da cultura. Mais do que isso, impede-o de refletir sobre sua condição de cidadão e de optar com maior liberdade por seu destino.

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